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Programa de Índio – Lilian vai ao Kuarup

07.01.2014

Foi Ruy Guerra quem me despertou para o Kuarup. Não, nunca assisti ao filme dele nem li o livro de Antonio Callado, mas a história sempre me fascinou. Isso foi no fim dos anos 80 e, desde então, a possibilidade de me infiltrar num Kuarup, a festa dos mortos dos índios do Alto Xingu, nunca mais me saiu da cabeça. Sim, porque mais do que qualquer festa VIP nesta é preciso ser da turma – uma turma muito seleta e fechada – e receber o convite, nominal e intransferível, do anfitrião. Ah, o networking, tão antigo, tão primitivo, tão genuíno…

O fato é que meu marido é mais antropólogo do que jornalista, sempre em busca de uma boa história ou de um simples pretexto para estar entre os índios. O Kuarup já tinha passado por perto algumas vezes: um amigo tinha ido e contou como era incrível, mágico etc. E eu: “Ohhhh!, Quero ir também, me chama!”. Quem me conhece sabe que festa boa para mim é com amigos. Não vejo muita graça em ir a festas de quem não conheço. Mas com o Kuarup era diferente.

Finalmente em agosto, meu amigo antropólogo Beto Ricardo, bem lacônico, solta a isca: vai ter Kuarup (nem todo ano acontece, já já explico) e há a possibilidade de irmos. Oba! Sim, claro! “E posso levar minha equipe do ‘GNT Fashion‘?” Nãooooo, foi a sonora resposta. E o que se leva na bagagem para um evento assim? Uma rede de dormir, sleeping bag, lanterna de cabeça, repelente, protetor solar e apenas uma mochila de mão. Mochila??? Fora a dos meus filhos, a última mochila que passou pelas minhas costas foi aos meus 13 anos… Acostumada a malas de rodinha e no mínimo três nécessaires por viagem, senti que o desafio começava ali. E adoro desafios. Consegui sintetizar minha vaidade em duas micronécessaires – nada como o exercício do desapego. Já a mochila, eu negociei. Prometi usar a menor mala de rodinhas possível e decidi levar apenas o que coubesse nela, incluído o kit sobrevivência básico (rede, sleeping bag, repelente).

Numa sexta, às 18h30, pegamos o vôo SP-Cuiabá-Sinop, que atrasou, é claro. Chegamos quase à meia-noite e dormimos em Sinop. No dia seguinte cedinho, seguimos num private jet, monomotor, até a aldeia dos Waurá. Sobrevoar tão baixinho a Amazônia e o Parque Indígena do Xingu já é uma emoção em si – boa pela exuberância dentro dele, triste pela devastação no entorno. Avistar do alto a aldeia foi coisa de filme mesmo. Ao lado da equipe do Instituto Socioambiental (ISA), éramos os primeiros “estrangeiros” a chegar. E lá fomos nós, pisando aquela terra vermelha, encantados com os índios que vinham nos receber. Na oca reservada para nós, cada um instalou sua rede (with a little help from our indians friends). Fomos recebidos com um delicioso tucunaré moqueado com beiju. Nesta altura já era meio-dia, e sair da sombra e do frescor da oca parecia missão impossível, tamanho era o calor e o sol lá fora.

O Kuarup (do kamayurá “kwarup”) é uma festa em homenagem a uma personalidade importante que morreu no último ano – o encerramento de um luto – por isso só acontece quando uma grande celebridade local morre. É quando se chora o morto pela última vez, se canta, dança e se luta, na crença de libertar a alma do morto para viver em outro mundo, ou seja, a ressurreição. No caso, o homenageado mor pelos Waurá era o cacique Atamai, que colaborou para a criação do parque e interação entre índios e brancos – assim, cabe à sua família o papel de anfitriã, que implica dar casa, comida e bebida para todos. Alguns poucos brancos já receberam essa honraria, como os irmãos Villas Boas, o antropólogo Darcy Ribeiro e o jornalista Roberto Marinho.

Os mortos são representados por troncos lindamente pintados e decorados de amarelo e vermelho (os troncos, ao final do ritual, são jogados no rio para seguir seu fluxo. Quanto mais importante o morto, mais grosso o tronco). Essa mesma decoração dá o tom na body art indígena. As pinturas tribais são feitas com talento de artista – traços finos, precisamente retos, saem de um gravetinho com linha na ponta; os mais largos são feitos com uma tira besuntada em óleo de pequi com a cor desejada: urucum para o vermelho, jenipapo para o preto. Os traços remetem aos peixes. As pintas, à onça. Durante a festa, a longa flauta (uruá, na língua dos kamayurá) será entoada várias vezes. As meninas que viraram moça, reclusas no último ano, saem literalmente da toca para serem introduzidas como mulheres à sociedade local, ganharem novo nome e terem seu casamento arranjado. Uma espécie de baile de debutante, com todos tentando registrar a melhor imagem com sua câmera ou celular. Mas em vez de vestidos bordados, elas se vestem apenas com sua pele – a mais branquinha que já tiveram, da cor do beiju – e o cabelo comprido cobrindo o rosto, até que sejam “reveladas” novamente.

Ao longo da tarde de sábado, os waurá vão se arrumando, se pintando, cantando, dançando, amarrando pernas e braços para ficarem mais fortes e bombados, se enfeitando com cordões coloridos de linha, penas, chocalhos. Tudo para receber os convidados das outras oito etnias indígenas da região, todos convidados para a grande cerimônia. Dessa vez, serão mais de 700 convidados: os kuikuro, os yawalapiti, os kamayurá…

No fim da tarde, os grupos começam a chegar. Ao redor da cada tronco, as mulheres chorarão seu morto noite adentro, interrompidas apenas pelo cântico dos homens, o som dos maracás ou pelo ritual de boas vindas a cada povo vizinho. Cada um tem sua vez, sua dança, seu fogo, sua comida. Os anfitriões não dormem. A lua quase cheia ilumina o clarão da floresta dispensando qualquer lanterna. É verdade que os índios já têm wi-fi e não fazem do fogo sua única fonte de luz: enfeites de led ou laser fazem parte da ornamentação, dando um efeito meio futurista à pintura corporal – aliás, a última temporada internacional de desfiles mostra que a inspiração tribal-étnica vai dominar a próxima estação!

Com os primeiros raios de sol, tipo 6h da manhã, a tristeza, o choro, a morte da noite toda dão lugar ao sopro de vida, simbolizados pela huka huka, luta tradicional que começa agora. Vaidosos de sua força e virilidade, os índios terão seus 15 minutos de fama, como numa final de UFC – o lutador Anderson Silva, aliás, esteve com os kamayurá, no Alto Xingu, para entender a luta indígena e, quem sabe, incorporar algum golpe ao seu repertório. Os anfitriões têm de estar bem preparados. Afinal, eles vão lutar com cada grupo convidado, um de cada vez. A huka huka começa com os lutadores mais fortes, mas até crianças lutam entre si – um ritual do qual muito se orgulham. E é lindo ver como as mães eventualmente intercedem por seus filhos, e são imediatamente obedecidas. Eu que não gosto de luta fiquei fascinada pela beleza dos gestos, a força, a ginga e a disciplina. Um espetáculo!

Já são quase 10h do domingo, a festa está quase acabando. As jovens índias de pele alva, acompanhadas de seu líder, agora devem entregar aos respectivos líderes convidados sementes de pequi – uma iguaria de forte conotação sexual (a fruta exalaria o cheiro do sexo das mulheres). Daí surgirão os próximos casamentos e assim a festa dos mortos também alimenta o ciclo da vida.

PS. Devo confessar que sequer abri a segunda nécessaire…

Lilian Pacce, especial para a revista “Vogue” Brasil de dezembro de 2013

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