O estilista que já vestiu um santo: Jean-Charles de Castelbajac

29.11.2017

Jean-Charles de Castelbajac, 68 anos completados ontem (28/11), é um dos mitos vivos da moda. Do casaco de ursinhos do fim da década de 80, que chegou a ser usado por Madonna e Lauren Hutton, ao casaco de Cacos dos “Muppets” vestido por Lady Gaga, passando por LL Cool J e até pelo papa João Paulo 2º, que depois de morrer foi canonizado – todos aderiram e adoraram JC! Extravagante e extramamente pop muito antes da Moschino de Jeremy Scott, ele já criou camisetão com o Snoopy, vestidos de festa que mais pareciam paraquedas e tantos outros looks que viraram ícones pra jovens estilistas (e referências muito, digamos, literais pra grandes marcas). Castelbajac veio pro Brasil nessa semana pela segunda vez (a 1ª foi em 1981) a convite do shopping Cidade Jardim pra criar a decoração de Natal do local, que ficou bacana e bem diferente das costumeiras renas e neve do inverno europeu. Passamos meia hora conversando com ele, que revelou que pretende voltar a fazer coleções sazonais, contou que quis trabalhar com os brasileiros do CSS mas não encontrou o contato (!!!) e disse o que acha das cópias do seu trabalho. Confira abaixo!

Você teria como comparar o Brasil de 1981, quando você veio da primeira vez, com o Brasil de hoje?
Pra mim isso passa por capturar a energia, e não posso dizer que a energia é diferente hoje. No Brasil, existe a permanência da esperança e do sorriso. Tem alguns países em que as pessoas estão sempre tristes, e então o reflexo na alma e no coração quando você deixa esse país é dessa tristeza. Quando deixei o Brasil em 81, senti a felicidade da vida! Até em diferentes extratos da sociedade, dos pobres aos ricos, todo mundo é tão bacana, tão gentil comigo. Estou sentindo essa mesma energia. É como quando uso todas as cores no meu trabalho, penso em humanidade desse mesmo jeito.

Sim, ia dizer isso, você também tem uma mensagem muito forte de esperança no seu trabalho.
Sim, como quando vesti o papa em 1997 [no Dia Mundial da Juventude], e ele se tornou um santo logo em seguida! Portanto sou o único estilista que já vestiu um santo… Só vesti um, de qualquer forma. [Muitos risos]

E vestiu muitos pecadores?
Muitos pecadores, começando por mim! [Risos] Mas vestir o papa é um nicho de mercado, né? [Risos]

Claro! Como foi que isso aconteceu?
Começou em 92. Estava trabalhando com Anish Kapoor e Gérard Garouste pra um comitê muito pequeno que misturava esse lado sacro com arte. Anish desenhou um hotel, Garouste fez um afresco e eu, que sempre penso em como trazer energia pras pessoas, disse que queria criar na cadeia. Foi escolhida a maior cadeia da França, com 5.000 detentos, e criei a capela dela. Foi tão incrível, ninguém ligava pra capela do presídio. Então perguntei pro padre de lá: “Como você se veste?”, ele mostrou um sueterzinho bege, disse que tentava ficar com uma imagem de limpeza, colocava uma pequena estola em cima dos ombros… Isso era um grande problema, porque pra um homem cumprindo uma pena de 20 anos, por exemplo, ele seria o único arco-íris entrando por aqueles muros ao lado da enfermeira e do advogado. Pedi pra criar um look apropriado. Desenhei um poncho quebra-vento com uma grande cruz branca na frente e recortes coloridos nos espaços ao redor dessa cruz: amarelo, vermelho, verde, azul. E na capela coloquei, atrás do padre, um grande spot de luz; ficou parecido com um vitral. Quando os prisioneiros souberam de tudo isso, a capela ficou cheia! Essa história maravilhosa virou matéria na “Newsweek“. Foi como um milagre! E aí um dos melhores amigos do papa João Paulo 2º leu esse artigo e me ligou, já tendo em mente o Dia Mundial da Juventude.

Ligou por telefone? Tipo “Alô, aqui é da parte do papa…”
Não, da parte do bispo primeiro! [Risos] Eles queriam que eu fizesse todo o conceito visual da cerimônia. Um milhão de crianças, 5 mil padres, 500 bispos e o papa. E você sabe, moda é algo particular, não tem a ver com religião, a ambiguidade entre conceitos de beleza e sagrado é bem polêmica. Lembra do desfile no filme do Fellini, “Roma”? Enfim. Fui visitar o bispo e disse: “Olha, tenho apenas uma ideia, se você não aceitar… Vai ser só essa mesmo”. Falei isso porque é sempre assim, mesmo. Foi assim também com o Cidade Jardim. Tenho um feeling, uma visão; se não for aprovado, paro. Não gosto dessa coisa de apresentar 10 propostas. Pro bispo apresentei, portanto, essa… [Começa a desenhar num caderno, e enquanto desenha, continua a falar] Engraçado, faz tanto tempo… Você sabe da próxima grande exposição do Met em NY? Vai ser revolucionária. É sobre a influência da liturgia católica na moda. Muitas coisas minhas vão entrar.

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Você chegou a fazer mais coisas relacionadas a esse tipo de vestimenta?
Ah, sim, muita coisa do meu trabalho é relacionada à minha juventude cristã. [pára de desenhar] Voilá! Minha ideia foi essa, o arco-íris [é o papa com look branco de cruzes coloridas; os bispos com um arco-íris vertical; os padres em grupos de looks monocromáticos, 1.000 de cada; e as crianças de camisetas também monocromáticas porém misturadas]. Achei que ele não ia aceitar, já que o arco-íris é símbolo gay, e o cristianismo com a comunidade gay não é lá muito… enfim… você sabe… [Risos] Mas ao mesmo tempo queria o arco-íris porque ele é o símbolo, na Bíblia, de ligação entre Deus e o povo. Depois do dilúvio, a redenção. No papa, essa constelação de cruzes e estrelas, uma galáxia de fé.

Dá pra ver que você estava pensando no cenário todo, em como isso ia ficar no todo.
Sempre! Primeiro a intuição, depois o conceito e aí sempre penso na imagem final. E o bispo me disse, depois de eu apresentar o projeto, algo genial: “Jean-Charles, não existe copyright sobre o arco-íris, ele pertence a todos”. É um link entre todos, entre pobres e ricos, entre negros e brancos, entre pessoas que possuem diferentes pontos de vista. É universal. Me deixa até arrepiado.

E eles não mudaram nada, portanto?
Quase nada… Na verdade eu queria o Malcolm McLaren [que revolucionou com o punk ao lado de Vivienne Westwood] fazendo a música. [Risos] Foi impossível, porque Malcolm já tinha feito uma música dizendo que era o anticristo… [Risos] Até eu mesmo tive problemas, quando tinha 17 anos fiz um registro da marca Jesus pra lançar calça jeans. [Risos] Bom, no dia da celebração foi inacreditável. Era tanta gente! 

Você é católico?
Sim, mas acima de tudo acredito em Deus, isso que é importante pra mim, a minha fé. E como usar a minha criatividade pra compartilhar algo com as pessoas? A cor é uma arma importante. Chamo de arma porque a cor é impactante, mesmo. Você pode mudar muitas coisas só com o uso dela. Mas quero contar do dia seguinte, quando encontrei com o papa. Ele me disse essa frase: “Você usou a cor como uma semente de fé. O que você fez foi incrível.” Isso está no cerne do meu trabalho. Quando você vê o ventilador aqui do Cidade Jardim com as faixas coloridas, por exemplo. Hoje entrei no shopping e uma das faixas tocou meu rosto – isso é tão bacana, eu a senti. E também existe uma ideia forte de democracia por trás disso. O meu objetivo não é fazer algo inalcançável, com cara de riqueza. Não: quero mesmo é que, quando as pessoas voltem pra casa e observem o ventilador delas, elas também possam colocar faixas coloridas nele. Quero inspirar as pessoas, essa é a finalidade! 

Veja também: Li Edelkoort busca a fé pra tirar a moda da mesmice

Bom, falamos de uma das maiores celebridades, o papa, mas você já trabalhou com outras. Qual foi a mais interessante?
Não me interessa tanto trabalhar com celebridades, o que me interessa é trabalhar com talentos. Por exemplo: vocês tinham uma banda chamada CSS no Brasil, não?

Sim! Mas não existe mais.
Eu sei. Mas enquanto eles existiam, tentei contactá-los porque queria trabalhar com eles. Nunca consegui o contato do agente ou algo do tipo. E não é que o CSS era a banda mais famosa do mundo, mas a ideia deles de mistura com tradição brasileira, hip-hop e tudo mais – isso me interessava. Gosto de bandas alternativas, como Crystal Castle, Hot Chip. Mas sobre celebridades, quem eu poderia citar… Teve o LL Cool J, ele amava os meus suéteres, coisas que eu fazia em 1983, e os descrevia como se fosse um símbolo da mais nobre família. De relações mais recentes, citaria o Kanye [West]. Na época o Virgil Abloh, da Off-White, veio ao meu ateliê com ele [Virgil era o diretor criativo de Kanye]. São curiosos, perguntavam coisas, e sou do tipo que gosta de compartilhar. E também citaria a Gaga, que é supercarismática. Quando a encontrei, tinha feito o casaco do Caco dos “Muppets”, sabe? Eram coisas tão extravagantes, mais pra dadaísmo do que Gaga! Muito Lady Dada! Depois ela me ligou de NY dizendo: “Ei, Jean-Charles, ganhamos o prêmio de casaco mais estranho na revista ‘People’!”, era tipo “o casaco mais feio da história” ou algo assim, e a gente ficou tão feliz! [Risos] Gosto do jeito que ela encara a beleza, porque beleza não é perfeição. Beleza está mais pra um acidente estético. O belo bizarro. 

O que você acha da moda hoje em dia?
[Pausa dramática] Acho que ela está fantasticamente excitante. 

Sério?! Esperava uma resposta mais negativa! [Risos]
Vou te explicar o porquê; é o momento mais excitante que já vi desde os anos 70. Quando cheguei na moda, naquela época, o que existia era um pesadelo hippie. Todo mundo com flor na cabeça, rendas, babados

E você, pelo visto, não gostava dessa estética.
Odiava! É o oposto do meu ideal de moda. Já cheguei fazendo roupas de ficção científica. Futuristas. Capas transparentes, quebra-vento de náilon laranja. No meu primeiro desfile, em 1972, começaram a dizer: “Jean-Charles, o Courrèges dos anos 70″, “O homem na lua”. E acho que é uma boa hora pra voltar pra lua. Estamos atolados num pesadelo hippie de novo. É um pesadelo no karaokê. Você não sabe qual marca faz o quê, são estampas cobrindo todo o look, e encontra peças de marcas superfamosas que só de olhar dá pra dizer o dia exato que elas foram criadas, só que é um dia de 20 anos atrás… Tudo é vintage. Tudo é uma gigantesca reinterpretação, uma enorme máquina de karaokê reinterpretando a história da moda. 

E geralmente pior que o original, já que a interpretação do karaokê geralmente…
Esse é o seu ponto de vista; já as pessoas nem conhecem a versão original… Ao ouvir a versão do karaokê sem conhecer a original, nem tem como comparar. 

Você se sente muito copiado?
É sempre embaraçoso falar disso. Tem uma geração de jovens estilistas, gente que me segue no Instagram; que tem 18, 20 anos; que me escreve todo dia sobre como meu trabalho é inspirador. O outro lado, que aí sim me incomoda, é quando sou copiado por um estilista famoso. Nunca copiei alguém na minha vida inteira. Aí posso ver o meu casaco de ursinhos, minha cadeira de ursinhos, tudo lançado por uma marca italiana, ou até mesmo por uma dupla brasileira…

Mas você é muito cavalheiro pra citar nomes, certo?
Voilá, não os cito! [Risos] É embaraçoso, mas isso é um problema deles e não meu, certo? Eles que se vêem toda manhã no espelho! [Risos]

A gente conversou com Jeremy Scott no ano passado, lembra? Vem ver!

E suas colaborações com artistas?
Ah, sim. Quando fiz arte e moda em 82, era pra fazer coisas com o artista, não era um co-branding. Keith HaringRobert Mapplethorpe… E era assim que Coco Chanel fazia com Daighilev, e Schiaparelli fazia com Dalí. Não era sobre quantidade [de peças vendidas]; era sobre o risco de trabalhar juntos! Com Mapplethorpe, os suéteres femininos que fiz foram vestidos por seus namorados negros. Fiquei um pouco surpreso – é isso que chamo de risco. Quando [Oliviero] Toscani pegava o ursinho e o arrancava fora… É isso, é aí que a criatividade está. Hoje ando um pouco cansado dessa dobradinha de arte e moda. Transformou-se em uma ferramenta de marketing. Mas acho que tempos mais empolgantes estão a chegar! Roupas novamente confrontam o estilo, com menos emergência. A gente já consegue identificar coisas como a Off-White, J.W. Anderson… Atualmente faço direção de arte pra duas marcas, a Rossignol, de roupa de esqui, e a Le Coq Sportif, de sportswear. Amo a essência do esporte, toda essa tecnologia é fascinante! Quando entro numa loja de tênis e vejo a qualidade do design… Uau! Me pergunto: por que a qualidade do design não sobe pra roupa? É um novo território. O meu projeto, não sei se em forma de palco, instalação ou performance, é voltar não em forma de moda mas em forma de estilo. Fazer uma revolução moderna. Arthur Rimbaud dizia: “Il faut être absolument moderne” [É preciso ser absolutamente moderno]. E eu o chamaria de Arthur Rainbow, sim? [fazendo um trocadilho com o nome e a palavra em inglês pra arco-íris]

Mas você voltaria a fazer desfiles de seis em seis meses?
Sim. Gosto de moda. Moda é um norte pra mim. Desde que parei com os desfiles, há uns dois anos, tem sido bem peculiar… Perdi a referência das estações. Parece que vivo na Califórnia! Sem estações! Faço arte, mas não é bem um norte. Meu interesse principal é a moda porque ela tem essa ligação com a vida. É como antecipar a vida, saber da vida antes, você funciona como um médium e vê o futuro. Se voltar, não farei a mesma coisa, será um novo degrau na minha produção. Como te disse, me interessa o sporstwear. Vejo 3 coisas: moda e tecnologia, moda e ecologia, e moda e compartilhamento. Tem um monte de coisas a serem reconsideradas. E é por isso que a moda está em um período excitante, enquanto todo mundo só reclama! [Risos]

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