Li Edelkoort busca a fé pra tirar a moda da mesmice

19.10.2016

Li Edelkoort, um dos nomes mais importantes da pequisa de tendências em âmbito mundial, veio ao Brasil pra palestras do “Fio da Meada“, evento que faz parte das comemorações de 50 anos do shopping Iguatemi de SP. Ela aproveita pra divulgar a 2ª edição da sua super revista “Bloom” dedicada ao Brasil, agora com o tema “Faith” (Fé), que já está à venda (dá pra comprar no site da Lili Tedde, que representa a Li no Brasil). A gente aproveitou pra conversar com Li, e o que era pra ter sido um papo rápido acabou virando uma reflexão bem profunda a respeito do mundo e da moda hoje. Confira:

Observamos um aumento chocante na velocidade da moda, mas você escolheu fé como tema da nova “Bloom” que está lançando no Brasil. Por quê?
Não acho que existe um aumento na velocidade da moda. Acho que a moda é a mesma há 20 anos. Ela não está se movendo, a gente finge que ela muda mas na verdade são as mesmas coisas repensadas de novo e de novo. Estamos comprando as mesmas roupas, os mesmos sapatos.

E por que você acha que isso está acontecendo?
Ah, existem muitas razões. Fiz o “Anti_Fashion Manifesto” [saiba mais sobre ele] no qual expliquei que existem pelo menos 10 motivos pra máquina estar emperrada. O maior deles é dinheiro. Ganância. Querem tirar muito dinheiro de um sistema que é feito pra inovação e mudança, e que agora não muda mais porque o dinheiro está acima do risco.

Você teria algum conselho pra quem está começando a trabalhar com moda agora pra não entrar nesse modus operandi?
Não entre nessa máquina antiga! Se você é uma start up nova, ou um jovem estilista, ou estudante, o melhor é achar pessoas que pensem do mesmo jeito que você e criar uma cooperativa, juntar forças. Fazer um site juntos, e um espaço de trabalho, um espaço de venda. Achar sua própria voz e criar seu próprio jeito. As coisas do jeito que estão são insustentáveis. Estudantes meus de NY, da Polônia, todos eles querem uma nova sociedade, com métodos mais sustentáveis e originais. Eles não se atraem pela quantidade, acham muito antigo quando as marcas que têm um volume grande de produção. O bacana é oferecer poucos itens, e talvez a cada mês um pouco de novidades. Alimentar o mercado como você alimenta um pássaro, sabe? Aos pouquinhos.

Tipo slow fashion e flow fashion?
Sim, flow fashion, um termo novo muito interessante, vou me lembrar dele! (Risos) Reagindo à temperatura, por exemplo, a circunstâncias, pra oferecer novos produtos. Talvez você tenha um estoque do qual você tira o que agora é importante pra oferecer.

E o see-now buy-now?
Quando você vê a Burberry fazendo o sistema de compra imediata, percebe que é a mesma jaqueta que eles fizeram há seis meses, é a mesma jaqueta que outra marca fez há um ano, é a mesma jaqueta da qual Michael Jackson sempre gostou, é a mesma jaqueta que Jimi Hendrix inventou, e é a mesma jaqueta que estará em outros desfiles na próxima estação. É muito confuso pro consumidor: “Que raios é essa jaqueta? Claro que quero esse tipo de jaqueta, mas compro agora mesmo ou espero por outra que seja mais interessante, na próxima estação, de outra marca? Quero gastar tanto dinheiro assim? Vai aparecer uma versão mais barata? Deveria comprá-la em um brechó, uma original, como Jimi Hendrix fez?” É muito complexo porque a jaqueta é oferecida num ângulo de 360 graus, e ainda assim é a mesma sempre!

Isso lembra o trabalho de Alessandro Michele na Gucci, ou do próprio Christopher Bailey na Burberry agora, sobre os bordados e aplicações…
Sim, esse movimento do enfeite é muito importante agora, vai continuar muito forte e cada vez mais exagerado. Pode ter pegada étnica, militarista, barroca… Essa tendência pode ser desdobrada de diversas maneiras, mas no fundo a moda hoje vende roupas simples com pedraria, broches, enchimentos, medalhas na superfície. Mas sua pergunta no começo foi interessante porque você me perguntou sobre…

Sobre fé, sobre você ter escolhido fé como tema da “Bloom”.
A palavra veio sozinha. Não a escolhi. A 1ª “Bloom” sobre o Brasil era muito sobre o mar, a floresta, plantas e flores, as pessoas, extroversão. Esse é o jeito que você geralmente sente o Brasil pela 1ª vez. Mas quando você volta várias vezes pra cá percebe que existem outras energias em jogo. Da última vez, antes dessa, que estive aqui, reparei que existe um outro Brasil que é amarelo. O óleo, o girassol, pedras preciosas, a palha, o ouro, o abacaxi, a banana. E claro que quando você está pensando em ouro automaticamente vem à mente elementos religiosos e barrocos. Quando começamos a pensar o conceito da revista, não é algo que a gente encontra: a gente cria. Na verdade a gente caça por coisas que já estão no nosso cérebro. Quando nos reunimos pra fazer a seleção final, com uma quantidade enorme de material pra editar em uma quantidade limitada de páginas, é uma energia muito condensada. Fizemos a seleção, o fluxo de imagens, deu em algo realmente poderoso e na manhã seguinte… eu precisava chamá-la de “Fé”. Fé no futuro, fé na criação, fé na natureza. Estamos perdendo fé porque está todo mundo com medo da crise política e econômica, do terrorismo, da questão da imigração, do crescimento do fascismo; tantas coisas horríveis. Achei que fé era uma boa ideia pra unificar toda essa energia nova.

É fé do ponto de vista de religião ou de otimismo no futuro?
Pode ser religioso, mas é mais sobre um ponto de vista espiritual que estamos falando. É sobre colocar tanta energia em um produto que o produto cria vida por si só, ainda que faça parte de um processo industrial; ele guarda tanta energia que isso fica palpável. No fim, o conceito ultrapassou minhas expectativas porque sob essa perspectiva do tema “fé”, você olha pras páginas de maneira diferente. A gente realçou esse lado da espiritualidade. E todo mundo reagiu de maneira muito positiva com o tema, como se precisássemos disso. Porque não temos mais a religião, ninguém vai pra igreja e ninguém se importa; até aí tudo bem. Mas perdemos os rituais, a concentração, o senso de comunhão, a celebração

O lado introspectivo também, né?
Exato. Existem vários artigos filosóficos interessantes sobre isso. A perda desse contato religioso está nos deixando muito pobres. Perdemos traquejos sociais, valores morais… Olha pro Trump, por exemplo, pra nomear só um. Essas perdas estão criando uma sociedade da barbárie. Precisamos ser mais espirituais, criar momentos de comunhão, jantares onde compartilhamos. Os jovens querem voltar a se reunir, não querem mais estar sozinhos; isso é o resultado de uma sociedade tão individualista, tão amoral.

Você acha que isso se reflete na moda de uma maneira concreta?
Moda talvez seja o último fenômeno cultural que é atingido; acho que no design isso já acontece. Na Bélgica, fizemos uma exposição chamada “Wild Things” com produtos de característica animista. Tem o lado espiritual, porque são artesanais, feitos de fibras, com um lado primitivo – porém contemporâneos. Acredito muito nessa direção, que está bem presente em jovens estilistas, mas nem um pouco presente nas grandes marcas e nas semanas de moda. A moda é a indústria mais voltada pra mudança, mudança é o que faz a moda seguir em frente, e não temos visto mudanças.

Existe o movimento dos makers hoje em SP, em feiras de rua, na internet…
Sim, não só em SP como em todo o mundo. Artesãos, gente que faz comida…

E chama a atenção o jeito que eles acrescentam histórias e energia nos produtos que vendem, não?
Sem dúvida, e por isso as marcas inteligentes estão lançando coisas artesanais. Karl Lagerfeld, por exemplo, que sempre sabe o que está rolando no mundo, sempre na frente. Algumas das marcas sabem como capturar isso. Mas só agora, em desfiles recentes, que você começa a ver alguma sintonia mais radical, só um ano depois do meu manifesto. Tenho conversado com alguns conglomerados de luxo, eles me pedem pra fazer a palestra sobre o manifesto antifashion. Imagina? Nesses templos do luxo?! (Risos) Fui muito honesta na apresentação e eles… eles concordaram.

Não é estranho que eles concordem e ainda assim corram atrás do see-now buy now?
Bom, eles estão todos pensando no que fazer daqui pra frente. Todos. Alguns de maneira desesperada. Alguns de maneira inteligente. Mas não existe marca alguma que está confortável com essa situação. Estão lutando já faz 9 anos. Todos sabem que precisamos de mudança. É um volume de produção muito grande. Tire 10, 15, 20% do que eles produzem e ainda assim é mais do que o bastante. Não precisamos de tudo isso, é um desperdício. Eles fariam muito mais dinheiro produzindo menos. As coisas que você produz devem ser poucas e muito bem-feitas, muito intensas, cheias de energia.

Sim, você deveria inclusive ficar orgulhoso de criar o que criou.
E todos sabem que tem coisas que vem do streetwear, surfwear, skatewear e música… Uma nova parka, um novo moletom com capuz, coisas muito simples, uma nova estampa; mas todos sabem que é isso que as pessoas estão gostando agora. Estamos caminhando de um domínio pra outro, e as marcas de luxo têm muita dificuldade de capturar essa energia.

Parece que existe muito mais energia na iniciativa independente.
Tivemos a mesma circunstância nos anos 70. Meu primeiro emprego foi numa loja de departamento, e comprávamos peças ladylike de luxo. De repente surgiu a necessidade de fazer coisas especiais pros jovens: corremos atrás de jeans bordado por presidiários, e silhuetas muito interessantes da Índia, você sabe, a era hippie… Mudamos completamente o mercado por causa dos jovens, e acho que a mesma coisa está acontecendo agora. Precisamos pensar no mercado jovem de maneira muito nova. E não pode ser uma boutique, talvez seja pop up, concept store. A única concept store realmente interessante hoje é a Dover Street da Comme des Garçons – não é só artigo de luxo, tem uma variedade, e posso ir de uma arara pra outra e me surpreender, me animar. Muito bons em visual merchandising.

Onde buscar inspiração quando temos essa overdose de imagem e informação?
Em você mesmo. Acumulamos tanto conhecimento, chegamos num ponto em que estamos tão repletos, atolados… Precisamos esperar, digerir, olhar pra dentro e esperar por alguma palavra-chave. E aí você pesquisa só a palavra-chave. Então, se a palavra-chave for “fruta”, você discute consigo mesmo: o que é fruta, o que a fruta é destinada a ser, quão bonita ela é, quais são as cores, qual é a textura, qual é a doçura ou o amargor, e posso fazer um novo produto a respeito disso? É com qualquer palavra-chave que aparecer pra você. Mas qualquer palavra-chave que venha na mente de alguém é uma palavra importante. Você tem que esperar a palavra emergir, ou até mesmo ir ao dicionário e pegar uma palavra qualquer. Não importa, porque as tendências se organizam ao redor de qualquer palavra que você escolher. Elas são tenazes. Mesmo com uma palavra que não seja tão intensa, as tendências dão um jeito de envolvê-la. É muito interessante que elas consigam participar sempre, seja lá como for. Se você for até o fim do mundo, elas o seguem. É inevitável.

Uau.
É, é estranho, mas é assim. Não é assustador, porque é algo que temos em comum. É o nosso espelho. Mas quando falo de tendência, não me refiro a tendencinhas, modinhas. Falo sobre macrotendências, grandes movimentos sociais. Coisas que realmente nos movem, que nos motivam.

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