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África com Okan: a tecelagem fula

19.06.2017

De volta a Mali, agora a gente acompanha Ligia Meneghel, da Okan, na pesquisa de mais uma cultura de tear, secular porém ainda viva. Confira:

No bairro de Medina Kora em Bamako, atual Mali, um grupo de aproximadamente vinte homens fula trabalham sobre teares tradicionais de madeira a pedal. Instalados em espaço público ao ar livre sobre o chão de terra, a comunidade originária da região de Mopti exerce a atividade pela qual é reconhecida historicamente na África negra: a tecelagem.

Segundo publicação do pesquisador Ambroise Dakouo pra African Societal Analysis (ASA), os fulas, originalmente nômades, começam a se instalar no delta interior do rio Níger a partir do século 14 conduzidos pelos ardos, chefes tradicionais pré-islâmicos. Terras férteis e inundáveis são partilhadas entre os diferentes clãs. No século 19, Cheickhou Ahmadou converte a população fula às leis corânicas criando o império teocrático do Macina, acentuando a sedentarização. Em 1850 El Hadji Omar, com o objetivo de construir uma grande nação fula de doutrina islâmica, inicia uma série de conquistas e amplia o território. A história desse império e das relações de dominação dos fulas sobre outros grupos gera impactos que se estendem até o presente. Hampate Bä, grande romancista fula, descreve este período no livro “O Menino Fula”.

A organização social fortemente hierarquizada é baseada na distinção entre os Rimbé, homens livres, e os Rimaïbe, escravos. Entre os livres e pertencendo a uma categoria específica estão os Maaboubé, ou maabuuBe (maabo no singular): são tecelões, sendo os únicos na região a ter uma casta profissional. Suas esposas tradicionalmente eram poteiras.

O livro “Les ethnies ont une histoire” afirma que os fulas eram os únicos a criar ovelhas ao longo do Níger, de Diafara até Tillabéry (República do Níger). Das ovelhas, eles filam e tecem a , tendo assim o monopólio dessa matéria-prima na África negra. Apesar da região subtropical, a lã é essencial pra população saariana por conta da temperatura à noite em janeiro, que pode chegar abaixo de zero.

O prestígio dos maaboubé é proporcional à necessidade do resultado de seu trabalho. Acredita-se que eles estejam na origem da arte da tecelagem. Afirmam que seu trabalho é singular em comparação aos outros (que teriam aprendido com eles), não apenas pelo uso da lã mas também pelas técnicas de acabamento. Entre as principais criações maaboubé estão os Kaasa, popularmente chamados de “cobertores de Mopti”, e o Arkilla Kerka, que é a “tapeçaria de casamento”.

Segundo pesquisadores responsáveis pelo acervo têxtil do Museu Nacional do Mali, até 1985 o Kaasa era o produto artesanal mais importante do Mali. Pilhas eram encontradas no mercado de Mopti e Bamako e nos centros de comércio mais importantes da África ocidental. Construídos em 6 tiras de tear agrupadas por costura à mão, seus desenhos costumam ser simétricos, com formas geométricas como triângulos, losangos, barras. Todos os desenhos tem um nome – não-obrigatoriamente relacionados a uma interpretação do universo ou a algum mito secular como frequentemente costumamos buscar entre as criações de culturas que foram mitificadas por escritos etnológicos. Ao perguntar o nome do tecido que o maabo de Medina Koura estava tecendo, ele menciona o nome de um cantor popular no Mali, pelo fato de ele ter usado um tecido de mesma padronagem em aparições públicas e shows!

O Arkilla Kerka, ou tapeçaria de casamento, frequentemente traduzido por mosquiteiro, é tradicionalmente usado pra cobrir a cama nupcial, o que explica suas grandes dimensões – de 4 a 6 metros de comprimento. Esta peça faz parte do enxoval da noiva e funciona como um dote, investimento que pode ser revendido caso necessário – ela já valeu o mesmo que uma ovelha.

Com o tempo os fulas passaram a usar também o fio de algodão filado à mão, e a partir de 1950 o fio industrial boloti, derivado do francês pelote. Na mesma época, novas formas de organização dos desenhos aparecem em forma de tabuleiro, mantendo ainda a técnica original. A introdução dos fios quimicamente tingidos faz surgir uma nova moda de tapeçaria com cores vibrantes, sendo as peças anteriores mais claras em algodão cru, marrom, bege e tons pastel dos corantes naturais. Essa tendência permanece até hoje com as peças tecidas pelos tecelões de Medina Kora. Hoje as peças de lã são raras no mercado – podem ser encontradas diretamente com os tecelões, nos antiquários e museus, como na exposição “Textiles du Mali” no Museu Nacional.

Fala-se de desaparecimento do têxtil tradicional em proveito dos tecidos industriais e da influência da moda ditada pelos países do norte geopolítico, que chega na região nas produções de massa chinesa e nas peças de segunda mão europeias trazidas em containers e vendidas a cada esquina. Pergunto ao tecelão qual é a situação atual e ele responde que já foi melhor tanto na demanda quanto na valorização do produto. Mas ainda que as previsões não sejam otimistas quanto a manutenção das identidades no mundo globalizado, os maaboubé de Medina Kora passam o dia numa produção constante, seja pro dote de noiva, seja pros chefes fulas. Os tecidos servem ainda hoje pra revestir o chão e as paredes das salas e quartos das comunidades da região, mas também pro consumo dos turistas. Apesar das mudanças, a tradição resiste: as peças mantém padronagem, tamanho e forma de produção no tear manual de pedal. Mesmo sob demanda, qualquer tentativa de alteração parece não fazer sentido pro tecelão tradicional.

Ligia Meneghel, da marca Okan, infohunter do site Lilian Pacce direto de Mali

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