A morte de Davide Sorrenti

29.06.1997

Divulgação

Foto de Nan Goldin

Corpos largados, cabelos desgrenhados, olhos perdidos e distantes. Os braços ficam dependurados ao lado do corpo, como se as mãos pesassem demais em relação ao eixo aparentemente tão leve. Muita cama, cadeira e sofá. Muito carpete, cortina e papel de parede. É este cenário e é esta cena que marcaram as imagens da moda nos últimos dois anos. Marcaram – e não devem marcar mais – porque nunca uma estética foi tão fiel ao mundo real,  só que a realidade acabou num episódio fatal.

O episódio acabou virando tema de um recente pronunciamento de Bill Clinton. Nele, o presidente americano acusou os estilistas a incitarem os jovens ao uso de heroína. “Glamourizar o vício para vender roupa não é bom para nenhuma sociedade”, disse. Calvin Klein, um dos grandes divulgadores da imagem, se defendeu alegando que não briefava suas campanhas, que os jovens contratados tinham plena liberdade e, portanto, as imagens eram apenas expressão genuína do mundo jovem.

Klein e Clinton têm ambos razão. Mas o episódio que levantou a poeira de uma estética que surgiu como reação à glamourização da moda – a estética heroína-chic ou a estética da desglamourização – foi a trágica morte do fotógrafo de moda Davide Sorrenti, de overdose de heroína, em fevereiro passado em Nova York. Diante da perda do filho mais novo, a mãe de Davide, a também fotógrafa Francesca Sorrenti (da atual campanha das marcas Bazar e Jeans de Christian Lacroix, entre outras), enviou uma carta-apelo aos estilistas e editores de moda pedindo que estabelecessem novas relações de trabalho entre contratados e contratantes e que apagassem as imagens do submundo junkie de suas campanhas publicitárias, catálogos e editoriais de revista.

Nascido em Nápoles, na Itália, Davide faria 21 anos no próximo dia 9. Desde 1982, quando os pais se separaram, ele morava em Nova York com o irmão Mario (fotógrafo), a irmã Vanina (stylist) e a mãe Francesca, estilista da grife Fiorucci nos bons tempos e fotógrafa há 15 anos. Ou seja, Davide cresceu no epicentro do cobiçado mundo da moda, convivendo com os principais “fashion image makers” internacionais. Ex-namorado da então emergente modelo Kate Moss e atual de Milla Jovovich, seu irmão Mario é o autor de clics das campanhas de Calvin Klein, entre outras.

Apesar do peso profissional da família, Davide procurava explorar um estilo próprio. Como a fotógrafa Nan Goldin, cujo estilo influenciou toda esta geração (e foi a verdadeira inspiração das fotos de J.R. Duran para o catálogo da Ellus – polêmico porque, segundo outsiders do mundo da moda, ele estaria reproduzindo cenas dos casos Daniela Perez e PC Farias), suas fotos eram o registro do modo de vida de seus amigos – a maioria retratada no filme “Kids“, de Larry Clark. A namorada de Davide, a modelo James King, foi capa da revista do “New York Times” (fev/96) num ensaio fotográfico da amiga Nan Goldin – em seguida, King esteve internada para se recuperar do abuso de heroína. Davide era louco por ela – e as meninas eram loucas por ele, um menino tão frágil quanto animado. Mas o que seus amigos não sabiam era que o uso de heroína, no caso dele, tinha um agravante. Ele sofria de talassemia, um tipo de anemia sanguínea. Para sobreviver, tinha que se submeter a transfusões de sangue quinzenais. Dias antes de morrer, havia viajado com a mãe Francesca para o México, de onde voltou de uma aparentemente bem-sucedida reabilitação.

A morte de Davide acabou encarnando a imagem trágica da estética de desglamourização que fez todo o sentido quando surgiu. A virada dos anos 80/90 estava enebriada pelo glamour das supermodelos, dos superfotógrafos, dos supercenários. A fotografia de moda expressava uma perfeição dos deuses, um ideal de beleza inatingível aos meros mortais. O mundo mágico da moda provocou os maiores complexos no universo feminino, quem dirá nos jovens. Não havia ginástica ou creme facial capazes de fazer a mulher se parecer com Cindy Crawford ou Linda Evangelista clicadas por Patrick Demarchelier ou Steven Meisel. As modelos se transformaram em deusas e os fotógrafos, em Midas. A moda passou a valer ouro.

Já em 1967, ao escrever “O Sistema da Moda“, Roland Barthes criticava de certa maneira este tom de bom-mocismo da moda que a “proíbe de proferir qualquer estética ou moral desagradável”. Os jovens ingleses, na entrada dos anos 90, foram os primeiros a contradizer Barthes. Eles se rebelaram contra o glamour fashion e logo ganharam espaço em veículos de expressão, como as revistas “i-D” e “The Face“, que dedicaram páginas e páginas à imagens de jovens comuns, despenteados, com unhas sujas, em quartos bagunçados. Os fotógrafos: os pioneiros Juergen Teller (alemão radicado em Londres) e Corinne Day (a primeira a clicar Kate Moss), David Sims, Nigel Shafran, Craig McDean (fotógrafo da atual campanha da Forum), Terry Richardson, Glen Luchford e o próprio Mario Sorrenti. As influências: Lee Friedlander, Robert Frank, Helmut Newton, Larry Clark e Nan Goldin.

A própria Nan Goldin se surpreendeu ao ver os personagens de suas foto-reportagens se transformarem em modelos meticulosamente desarrumados nas fotos de moda de revistas “cool and cult”. “Minhas fotos são fruto das minhas relações pessoais, meus amigos mais próximos, e não o registro de um observador distante”, esclarecia Goldin, ela mesma reabilitada do uso pesado de drogas e testemunha íntima da morte de muitas vítimas da AIDS.

A influência de Nan Goldin foi além dessa nova geração de fotógrafos de moda. Chegou aos estilistas mais modernos do circuito Paris-Londres-Nova York, como Helmut Lang e a própria Prada. Jean Colonna foi o que mais expressou sua gratidão, digamos, pelo trabalho de Goldin. Dois anos atrás, todo o cenário e atitude de seu desfile em Paris eram inspirados na fotografia de Goldin.

“Há uma verdadeira estética da imperfeição que reage à irrealidade da beleza imaculada”, analisa Stephane Wargnier, especialista em mídia e professor do Instituto Francês de Moda, em entrevista a Patrick Remy no livro “Fashion – Images de Mode” (ed. Steidl). Já o fotógrafo Jurgen Teller conta em seu livro que seus primeiros contatos com as supermodelos ocorreram em backstages, onde ele sentiu “uma grande insegurança delas em relação ao corpo e à aparência”. “Não quero explorar essa insegurança, mas sim mostrar que a beleza pode ser encontrada na fragilidade”, explica. Teller, que sempre trabalha com a namorada e stylist Venetia Scott, diz que procura transmitir beleza e romantismo em seu trabalho: “A imagem de um cachorro morto ou um carro amassado é muito romântica – mas pode ser bastante melancólica também”.

O uso de drogas é apenas um elemento da estética da desglamourização, reflexo puro de uma realidade juvenil de grandes centros como Londres e Nova York. Importá-la automaticamente para o Brasil fragiliza as campanhas que a adotaram. Mas se a heroína tem pouco a ver com o eixo Rio-SP, outras drogas marcam forte presença e não é ignorando-as que elas vão deixar de existir. Nova York, como centro comercial mais importante no circuito de produção de moda internacional, tem o dom de unir jovens ingênuos a ricos angustiados, todos ansiosos para criar a imagem de amanhã.

A carta-apelo de Francesca Sorrenti conta parte das relações desse mundo e procura  reverter não só a estética heroína-chic como criar novas bases de trabalho no mundo da moda. Ele questiona: é criativo fotografar uma menina de 13 anos com uma blusa de US$ 1,3 mil? Pedir a modelos menores de idade que trabalhem de 10 a 14 horas por dia não é explorá-los do mesmo jeito que a indústria têxtil o faz em países de terceiro mundo? E conclui: quem resistiria aos apelos adultos diante de US$ 50 mil no final do mês e um apartamento à disposição em Nova York ou Paris?

Lilian Pacce para O Estado de S. Paulo

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