Doisélles outono-inverno 2017

07.10.2016

Raquell Guimarães tem um trabalho muito bonito: o slow fashion do tricô manual ganha valor na sua marca Doisélles. Uma roupa pode demorar 5 dias pra ser feita – luxo mesmo! Mas o melhor é a história por trás disso: a estilista usa sua produção como processo de reinserção social de presidiários, que ganham dinheiro e aprendem um novo ofício na Penitenciária Professor Ariosvaldo de Campos Pires, em Juiz de Fora. Pra esse desfile de estreia da marca, existem então essas duas necessidades: explicar essa trama por trás da roupa e também apresentar uma imagem de moda na passarela que seja condizente com a postura social dela.

Desde o início da marca, em 2009, Raquell sempre foi um caso à parte, avessa ao chamado “mundinho”. E aqui ela veste as modelos com coturnões, como se botasse o pé na porta pra conseguir impor o seu lado da história, e pede pro beauty artist Ricardo dos Anjos rabiscar a cara delas como se já avisasse: aqui é outra coisa. Na trilha, que mistura Criolo com textos falados pela própria Raquell, saem recados que respondem a comentários que a estilista já ouviu. A roupa não tem “a energia do crime que o detento cometeu”, por exemplo (e aliás, quem poderia falar algo desse naipe?!). Uma placa pendurada no local de trabalho, aliás, avisa: “O delito fica do lado de fora”. É muito intensa e preciosa a questão que a estilista faz de quebrar o preconceito contra a população carcerária no ambiente elitista de passarela – e dá pra perceber que Raquell não faz isso pela marca simplesmente, mas por eles, pela sua convicção neles.

As peças em si poderiam reafirmar a tendência agênero pela silhueta reta e a introdução da malharia em looks longilíneos (essas são novidades de presidiárias do Complexo Penitenciário Feminino Estevão Pinto), mas o styling de Mary Arantes vai pra outro lugar: a feminilidade é ressaltada com as tramas abertas, as franjas, o toque da ; e ao mesmo tempo discute-se essa dualidade, esse “dois” que está no nome da marca e que também sugere que tudo tem dois lados. É uma apresentação com diversas camadas de significados, assim como a roupa em si.

E até no casting existe uma surpresa: a presença de Marcella Moreira, ganhadora do concurso Miss Prisional (que, sim, escolhe a presa mais bonita do Brasil e que é importante pra autoestima delas). Não se preocupe em reconhecê-la no meio das outras modelos do desfile, primeiro porque vai ser difícil (Marcella tem altura e porte semelhantes aos das colegas de passarela) e segundo porque nesse dia ela foi isso mesmo, mais uma modelo no meio das outras. Dá também pra encarar o fato como uma metáfora pra alteridade, pra empatia, pra conseguir se ver na pele do outro a fim de entendê-lo. Você consegue? (Jorge Wakabara)

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