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Pierre Cardin chega hoje a São Paulo

26.04.2011

Publicado originalmente em 1987 na Folha de S.Paulo

Não existe no mundo um estilista que tenha seu nome em tantos produtos como Pierre Cardin, que chegou sábado no Rio. Seu alicerce é a moda, mas hoje, mais do que grifes, ele detém um império cujo faturamento ultrapassa um bilhão de dólares, de negócios diretos e principalmente indiretos, como as setecentas licenças distribuídas em 97 países que empregam 180 mil pessoas.

Nem Cardin sabe qual é o produto industrializável que ainda não leva sua marca. De máquinas de calcular a restaurantes (quatro Maxim’s, outra marca sua, no mundo), de óculos a teatro, de cozinha a gravatas. Sua produção de gravatas, aliás, daria a volta ao mundo se uma fosse amarrada à outra, segundo ele.

É evidente que Cardin sempre correu atrás de sucesso. Mas se isso lhe bastasse, ele se contentaria em ser estilista de ricos e famosos, ganhador de três Oscars da moda (o último há dois anos). No entanto, sua principal característica é o pioneirismo. Em 1960, apresentou a primeira coleção completa de roupas masculinas não-produzidas na Inglaterra. Em 59, levou sua coleção prêt-à-porter ao Printemps, um grande magazine francês. Dois anos antes já tinha negócios com o Japão – época em que se cobiçava os Estados Unidos. Até no Brasil ele acredita há muito tempo. Hoje ele chega a São Paulo e amanhã participa das comemorações do vigésimo aniversário de sua marca no país. No final da tarde, corta a faixa de inauguração do Museu Estevão Brett (na altura do quilômetro 17,5 da via Anhanguera, zona oeste de São Paulo), da marca Vila Romana (uma de suas licenciadas aqui).

ReproduçãoPierre Cardin

Fazem parte de sua agenda negociar a reabertura do restaurante Maxim’s, na torre Rio–Sul (Botafogo, zona sul carioca), lançar seu primeiro perfume masculino (“Bleu Marine”) e o prêmio Pierre Cardin a um jovem estilista brasileiro que ganhará um curso de estilismo em Paris e um estágio em seus ateliês de criação, em 1988.

Para quem não pratica esporte, ele está muito bem em seus 65 anos. Veneziano radicado em Paris, Cardin tem “know-how” de um político ao dar entrevista: só responde o que quer, sempre com a maior simpatia. Apesar de sua fortuna, ele insiste em dizer que é um homem simples. Durante o farto café da manhã servido na suíte imperial do hotel Caesar Park, no Rio, onde ficou hospedado, ele comentou: “Tenho tudo isso, mas só tomo um café”.

Folha – Pierre Cardin hoje, mais do que uma marca, é um império. Como se constrói um império tão diversificado como o seu?

Pierre Cardin – Você acha mesmo que é mais do que uma marca (risos)? Bem, eu mesmo me pergunto isso. Acho que é a continuação de um “métier” que se diversificou dia-a-dia e que tornou conhecida a marca através da imprensa no mundo inteiro. A partir de uma época, as pessoas é que começaram a vir a mim para pedir meu nome. Não era mais eu quem as procurava. É claro que no começo eu dizia: quero fazer móveis, isso e aquilo. Até os fabricantes de design vieram a mim. Quando comecei com as licenças, em 1959, isso era completamente fora de hábito. As marcas existiam por si só, não eram de um costureiro – exceção feita aos perfumes.

Folha – O que o levou a trabalhar com licenciados numa época em que isso era um negócio incerto?

Cardin – Na verdade, eu já fazia muito sucesso como jovem costureiro – como Montana e Mugler hoje, só que eles não são mais tão jovens, mas eu era realmente jovem, comecei com vinte anos. Eu pensava que a moda deveria ganhar dinheiro para se estabelecer. Trabalhei de 1950 a 59 sem ganhar nada. No final de cada ano, eu tinha muito dinheiro com a minha Maison de alta costura (porque eu tinha muito sucesso), mas depois de pagar tudo, pouco sobrava. Isso porque era a época das grandes “maisons”. Eu mesmo empregava trezentas pessoas ou mais, meu endereço no Faubourg Saint-Honoré estava sempre repleto, havia gente trabalhando até no porão.

Era aberrante, porque hoje não temos o mesmo sucesso. Nesse prédio havia um camiseiro embaixo e eu só podia fazer camisas porque o pagamento de luvas era alto. Então comecei a produzir e exportar camisas e gravatas, assim não precisava pagar um centavo a mais. Assim surgiu a primeira gravata Pierre Cardin e hoje elas podem cobrir a linha do Equador se forem amarradas uma a uma.

Folha – Hoje qual é o produto Pierre Cardin que vende mais? São os perfumes?

Cardin – Infelizmente não são os perfumes. Acho que são as roupas mesmo, além de todos os acessórios: relógio, cinto, bijuterias, sapato, meia, chapéu. Temos uma variedade enorme de coisas.

Folha – Ainda existe algum item sem sua marca?

Cardin – Acho que são pouquíssimos. Porque tenho as marcas Cardin e Maxim’s que juntas, englobam muita coisa: chocolate, vinho, cama, cinema, teatro – você conhece meu teatro, o Espace Cardin, em Paris, não? Isso significa que eu posso comer, me vestir, ir ao espetáculo, dormir, beber, enfim, viver por mim mesmo. É extraordinário. É um nome comercial que desperta o interesse dos jornalistas onde quer que eu vá – enfim, é uma informação jornalística.

Folha – Os jovens artistas que ocupam seu teatro não costumam dar dinheiro a ninguém. A arte é um hobby ou um negócio para o sr.?

Cardin – O teatro, assim como a alta costura, não é um bom negócio. Ambos me permitem estar na atualidade, ganhar outros produtos. A alta costura é um ótimo laboratório para meu trabalho, porque eu não vendo só meu nome, eu produzo idéias.

Folha – Mas o sr. dizia antes que o prêt-à-porter era melhor do que a alta costura, porque todo mundo deveria ter acesso à boa roupa. Foi o sr. que mudou ou a alta costura?

Cardin – A alta costura vai muito bem, apesar de custar muito caro. Houve época em que eu queria o prêt-à-porter. Hoje eu faço pouca alta costura porque existem mulheres que querem modelos exclusivos e não a cópia. Na minha juventude fui um pouco contestador, achava injusto. Mas eu não mudei meu jeito. Você vê: me deram tudo isso (ele aponta para a mesa do café da manhã) e eu só tomei um café. Não é porque sou mais importante ou mais rico que vou mudar de vida. Mas me fazia mal ver que só quem tinha dinheiro podia se vestir com os criadores – foi por isso que contestei a alta costura. Eu era jovem e, como sempre, eram as mulheres mais velhas que tinham o dinheiro. Essa diferença me incomodava e queria fazer roupa para a mulher jovem, de cabeça e corpo. Hoje a linha Prestige serve a essa mulher e vai muito bem. É a conciliação do prêt-à-porter com a alta costura.

Folha – Por que o sr. não apresenta sua coleção de prêt-à-porter junto com os outros estilistas?

Cardin – Eu tenho prêt-à-porter no mundo inteiro, em 97 países, então não preciso mostrá-lo para meus clientes. Além disso, há muito desfile para pouco tempo. É impossível acompanhar todos. Já a alta costura eu apresento duas vezes por ano em meu teatro – aliás, fui o primeiro a levar uma coleção ao teatro. Sempre faço o contrário dos outros. Não sou um imitador. Quando alguém faz uma coisa, eu faço o oposto.

Folha – Quando o sr. saiu da Itália e veio para a França?

Cardin – Minha família se mudou quando eu tinha dois anos. Eu era o mais jovem, hoje todos morreram. Mas tenho muita gente que trabalha comigo há anos e conhece bem meus negócios. Quando eu morrer, eles vão saber continuar. Além disso, penso que haverá interesse de todos, pois há 840 fábricas que têm o nome Cardin – eles não podem deixar cair tudo isso. Acho até que a marca ficará mais forte com essa união de interesses e força. Eles vão querer torná-la ainda mais poderosa.

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Folha – O figurino que o sr. fez para o filme “A Bela e a Fera”, de Jean Cocteau, marcou sua carreira. Qual sua relação com o meio intelectual?

Cardin – Me interesso por tudo que é artístico. Há vinte anos tenho um teatro e eu mesmo trabalhei como dançarino e ator (no filme “Joana, a Francesa”, rodado no Brasil, com Jeanne Moreau). Mas me exprimo melhor em meu “métier”. Hoje, com meu teatro, seria mais fácil ser diretor ou ator, mas sou um homem ativo demais para ficar esperando o dia da apresentação – isso exige muita passividade da pessoa. Eu morreria se fosse ator.

Folha – É o sr. quem decide o que vai ser apresentado no Espace Cardin?

Cardin – É claro, sou eu que faço todos os espetáculos, senão não me interessaria ter um teatro. Se eu tenho é para me servir. Há muitos inconvenientes e muitos problemas no teatro – até mais do que na moda. Então, se eu não pudesse optar pelo que eu gosto, para refletir o que penso, eu não o teria.

Folha – Qual é o espetáculo de maior sucesso em seu teatro?

Cardin – Na realidade, em quase trinta anos não houve um sucesso comercial, apenas sucessos de prestígio. Ele é vanguarda demais.

Folha – Seu faturamento ultrapassou um bilhão de dólares. O que o sr. faz com o dinheiro?

Cardin – Eu trabalho com meu dinheiro, trabalho apenas. Gasto muito com o teatro, tenho uma companhia de teatro também.

Folha – O sr. não se diverte nunca? O que o sr. gosta de comprar?

Cardin – Invisto sempre no progresso. Não tenho tempo para me divertir, só para trabalhar. Mas como é um trabalho que eu gosto muito, é também um divertimento. Tenho um barco mas não uso.

Folha – Quantas casas o sr. tem no mundo?

Cardin – Ah, não sei quantas. De qualquer jeito eu viajo muito e estou sempre nos hotéis. Não tenho tempo para viver em uma casa.

ReproduçãoPierre Cardin fez uniforme de enfermeiras em 1970

HOJE

Pierre Cardin é sem dúvida um dos grandes visionários da moda e sempre foi dono do próprio nariz. Em 91, recebeu o título de embaixador da Unesco. Mas 93 foi um ano difícil. Perdeu seu companheiro de vida e trabalho, o francês André Oliver, e acabou deixando a Chambre Syndicale de la Haute Couture. De lá para cá, a marca Cardin vem se recolhendo, embora o criador continue ativo. Mora na elegante residence Maxim’s, em Paris, vai ao trabalho todos os dias e continua a investir em teatro: em 2001, em Lacoste, no sul da França, realizou um festival de verão no teatro ao ar livre que construiu em seu castelo, que pertenceu ao marquês de Sade. Lá ele mantém também seu museu particular, onde todo seu acervo (incluindo croquis) é preservado. Nos últimos anos, vendeu parte de seu império mas, pelo menos enquanto viver, parece se recusar a investir num herdeiro criativo que faça seu nome brilhar novamente.

Lilian Pacce, especial para o jornal “Folha de S.Paulo” em 23/11/87, publicado também no livro “Pelo Mundo da Moda

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