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África com Okan: o bordado dogon

22.05.2017

Ligia Meneghel, da marca Okan, conta pra gente sua experiência com o povo dogon do Mali. Confira:

Em Bamako, capital do Mali, toda procura por índigo aponta pro país dogon, forma popular de se referir à região habitada por essa sociedade. Os dogon ficaram conhecidos no ocidente desde as controversas expedições e relatos do etnólogo francês Marcel Griaule no século 20. Os curtas exibidos no início das sessões dos cinemas franceses sobre a cultura local e a divulgação da cosmogonia dogon e seus conhecimentos astronômicos da estrela Sírius atraíram inúmeros pesquisadores, curiosos e turistas, impactando a vida social e econômica da região desde então.

E a presença de panos chamados índigo no comércio é relativamente frequente, principalmente nos mercados artesanais como o N’Golonina e o marché des artisans em Bamako. No entanto, encontrar especialistas na produção de tintura natural índigo é cada vez mais raro desde a chegada do pigmento sintético – o processo vem sendo substituído por conta da praticidade e rapidez do outro. No meio dessa busca conheço Pedro, que supostamente trabalha com o processo que procuro, por ele denominado “bio”. Mas apesar de utilizar algodão orgânico tecido em tear, o tingimento em si não é natural. Pedro, assim como outros que estão no meio, afirma que a relação com o tempo hoje é outra, e que apenas entre os dogon é possível encontrar especialistas trabalhando ainda hoje com a folha original.

Pergunto à Levieux, um jovem guia dogon, sobre a possibilidade de encontrar o processo na sua região. Ele explica que os tecidos produzidos pra comercialização no geral são feitos com índigo químico ou misto, já que para obter o azul marinho são necessários diversos banhos na tintura – pra agilizar o processo, um pouco de pigmento preto é adicionado. 

A substituição dos processos de tingimento parece normal – a industrialização oferece formas de produção mais rápidas que ocuparam os espaços dos fazeres artesanais e naturais. A consciência da importância da preservação ambiental e o apelo da desaceleração no universo têxtil e fashion questiona as vantagens da praticidade e velocidade industrial, mas ainda não oferece respostas que conciliem a retomada do artesanal, slow e natural com o sistema de mercado capitalista, visto que o faturamento é imprecindível pra sobrevivência econômica. Dessa forma, as dinâmicas sociedades africanas recebem as facilidades da modernidade com entusiasmo. E é importante salientar que, mesmo com o processo de tingimento acelerado, a criação das padronagens segue os mesmos processos manuais iniciais: cada desenho é formado por alinhavados feitos à mão extremamente complexos e trabalhosos. A técnica consiste em costurar e vedar o tecido pra que a tinta não penetre, criando nesse espaço as padronagens em branco contrastando com o azul índigo.

Eu já conhecia a arte de estamparia e tingimento em índigo desde minha primeira viagem ao oeste africano, no Senegal, onde mulheres praticam a técnica na região sul de Casamance. Porém, no mercado artesanal de Bamako, um tecido chama atenção: um pano índigo bordado com linhas de lã em cores vibrantes. O vendedor conta que são panos dogon, e pergunto a Pedro onde posso encontrar essa produção. Ele me leva ao bairro onde mora sua família, Medina Koura. Um dos mais antigos de Bamako, o bairro reúne tintureiras, estampadores, costureiros, tecelões. Grupos de homens e mulheres trabalham ao ar livre, pela rua, ou em pequenos ateliês. Os tecidos coloridos estendidos dominam a paisagem. Na calçada em frente a porta de casa, duas mulheres vendem panos entre incensos e colares, que elas passam o dia bordando.

De origem dogon, as duas irmãs me contam que os tecidos são de algodão filado à mão pelas mulheres de sua região. Em seguida, os tecelãos produzem faixas de tecido no tear manual e as mulheres unem as faixas com costuras à mão, montando a extensão que deve ser por fim tingida. Pergunto se elas tingem e rapidamente me respondem que não – assim como Pedro, não pertencem à casta dos tintureiros (que são de linhagem nobre). O que elas fazem é bordar sobre o tecido tingido. Pergunto se a atividade de bordadeira não é exclusiva de alguma casta: “Não, o bordado é livre, todos podem fazer”. Entre os tecidos expostos na bancada, dois processos de estamparia diferentes aparecem: o primeiro já mencionado acima, com costuras, e o outro é com cera de vela branca derretida. Ele pode ser feito à mão livre com pincel ou bastão, ou ainda com carimbos de madeira, e também se baseia em preservar aquele espaço de tecido do contato com a tinta. 

Os bordados usam vermelho, verde, azul, rosa, laranja – tudo misturado. Vão desde listras paralelas minimalistas até ricos desenhos cobrindo grande parte da superfície do tecido, sobrepondo-se ao padrão em branco, refazendo toda a estampa. Uma delas está bordando uma aranha e compara o incessante trabalho do artrópode com a vidas das mulheres dogon que, segundo ela, trabalham do nascer ao por do sol, todos os dias sem parar. A imagem da aranha também se conecta ao ato de tecer, criando um paralelo com o tecelão. “A aranha não é má. É um bom sinal, de prosperidade”, ela explica, contando que aranhas bordadas em panos são oferecidas a jovens em idade de se casar, pra atrair um casamento próspero que garanta boa alimentação e vestimentas. E a vestimenta, o tecido, é muito importante: “Toda vida você usa um tecido. Ao chegar ao mundo você é acolhido por um pano, ao partir sua mortalha é um tecido”. 

Tecidos artesanais tradicionais são escolhidos pra momentos especiais como nascimento, circuncisão, casamento e funeral: acontecimentos acompanhados de rituais que marcam passagens de etapas importantes da vida. Assim como o tecido e a aranha estão associados e têm suas simbologias, a agulha em si também tem uma função prática de unir as tiras de tecido. A agulha cria a união e é oferecida à noiva tanto por sua função prática como simbolizando os votos de uma união bem sucedida entre a menina, o marido e a família do marido com quem ela vai coabitar a partir do casamento. O trabalho manual com a agulha evoca ainda a habilidade de ser paciente, não apenas na longa construção do tecido mas também nos relacionamentos, principalmente dentro da família estendida. É importante lembrar que a poligamia é uma prática comum: as mulheres convivem não apenas com a família do marido como também com as coesposas.

Outro bordado recorrente nas criações das irmãs é o kanaga, símbolo dogon que evoca o deus criador Amma. A forma do kanaga com os braços levantados pra cima simboliza a graça de Deus, assim como a união. Ele aparece também sob forma de máscara nas danças rituais. 

Além da presença dos símbolos, os tecidos recebem também nomes. Um deles, Oumou Sangaré, é o mesmo nome de uma cantora popular do Mali que apareceu publicamente vestindo um tecido com a mesma padronagem. É relevante o fato de atribuir o nome de Oumou Sangaré ao tecido – a cantora e compositora se inspira na música tradicional da região, é engajada na causa feminina e aborda temas como a liberdade de escolha no casamento. Os significados por trás das criações não precisam estar necessariamente presos a um passado imobilizado – atribuições de valor e simbologia podem estar inseridas no contexto da experiência das irmãs, carregadas de sua história ancestral e também de sua existência na contemporaneidade. A atribuição do nome Oumou Sangaré ao pano é um exemplo válido neste sentido.

A consciência da mudança dos tempos está viva no discurso delas ao discorrer sobre as transições no uso do pano índigo. Inicialmente o pano preto (ela diz que só os ocidentais o chamam de azul) era apenas amarrado pelas mulheres em volta da cintura, mas com a modernidade as vestimentas passam a ser costuradas com o tecido. A cor escura não é gratuita – tem por objetivo esconder as impurezas das mulheres. Uma mulher nunca usa um tecido em algodão cru, essa cor é apenas pros homens. Assim, as interdições e tradições vão revelando também seu lado prático e lógico. Pergunto sobre o bordado, trata-se de uma prática antiga? “Não, é contemporâneo, não data de mais de 20 anos, é uma forma de decorar os tecidos pra torná-los mais atraentes pra nós, assim como pra comercialização com o estrangeiro”. A produção têxtil local está atenta ao consumo dos turistas: “Isso faz entrar dinheiro pra mulher que cria, pra quem vende e pro país”. Entre intercâmbios e tradição, entre modernidade e ancestralidade, a arte têxtil se renova e continua proporcionando, como dizem frequentemente nos mercados, o “plaisir des yeux” (prazer dos olhos).

Ligia Meneghel Chagas, da marca Okan, infohunter do Site Lilian Pacce direto de Mali

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