Imagina se você usasse as roupas de outra pessoa por 7 dias?

19.07.2017

Beatriz Cruz é uma artista paulistana que se especializou na técnica Klauss Vianna e hoje foca em trabalhos de performance e intervenção urbana. Ela é o nome por trás do “Projeto Desandar“, uma série de programas de performance – são pequenos textos-instruções que ela, ao cumpri-los, registra em fotos e relatos escritos e que se inspiram no trabalho de Yoko Ono e o seu mítico livro “Grapefruit”. Inclui diários íntimos escritos em muros, organização (e desorganização) de destroços que interferem na paisagem da cidade e até relações provocantes com frutas compradas em feiras, com a ideia de que essas performances são replicáveis por qualquer um que leia e siga a “fórmula”. Mas o que chama a atenção do fashionista e o que mais aparece no Instagram do “Projeto Desandar” é o programa “Descaracterizar-se para Desandar“, onde ela escolhe pessoas que vão vesti-la com roupas delas por uma semana. É uma prática que gera diversas reflexões em Beatriz, as quais ela divide nas legendas das fotos do Insta, fazendo com que a gente também se questione. A gente conversou com a performer pra saber mais sobre essa ação tão instigante – confira:

De onde veio a ideia?
Quando estava começando a criar os programas do “Desandar”, também estava investigando gênero. Ela veio pra pensar construções de gênero, mas comecei pela minha mãe! A 1ª pessoa que me descaracterizou foi ela: me vestiu, cortou meu cabelo, fez escova… (Risos) E ela indicou a próxima pessoa, que foi minha irmã, que indicou minha prima, que indicou minha avó, que indicou outra prima…

Então começou em família.
Sim, mas não chegou nos homens da família! Aí fui pra minha amiga mais antiga, que indicou outra amiga… Nessa hora, decidi que queria abrir a experiência pra ver se outras pessoas se interessariam. Fiz uma convocatória no Facebook e no Instagram. Aí as pessoas foram vindo, um monte. Também comecei a realizar performances em outros lugares, vinham falar comigo sobre o assunto, e assim pessoas que eu não conhecia passaram a participar. Agora estou falando pras pessoas que já participaram indicarem outras. Ao todo são 42 participantes até agora, consecutivos, e pretendo fechar em pelo menos um ano de processo, no fim de outubro.

Mas aí a coisa ultrapassou a investigação de gênero, né?
Sim, tem a questão da construção da identidade contemporânea a partir da roupa. A gente vive num mundo em que as coisas são muito dadas, tudo pronto, temos que ser totalmente conscientes de nós mesmos, com destino pré-definido. Se você sai um pouco da linha, já viu. E tem essa coisa de valorizar sua autoimagem a todo momento. Experimentando prolongadamente, mudando a cada semana, sinto que dou uma diluída na minha identidade, e acho que isso é importante hoje. Quando as pessoas se vêem espelhadas em mim, também dá essa esgarçada na identidade delas. De repente, o jeito que cada um se constrói vira apenas uma das possibilidades. Somos centrados dentro de certos padrões, outro corpo pode experimentar esses padrões. Às vezes me olho no espelho e tem um instante entre ver e reconhecer, isso é uma coisa potente. Essa experiência é uma forma de habitar outros pra sair um pouco de si. A coisa do gênero aparece em uma outra camada desse processo de dissolução.

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Desde outubro de 2016 que você faz esse projeto de maneira consecutiva. E as suas roupas?
Não uso desde então. Às vezes coloco algo por baixo porque está frio. Tem coisas que ganhei e nem vesti! Ganhei um vestido no Natal que achei lindo mas ainda não usei. Uma echarpe, também, de um amigo que me trouxe de uma viagem…

E a questão do tamanho, como você resolve?
Sou pequena, então de alguma maneira tudo cabe. Quando fica grande tenho elástico, alfinete, que resolvem. Nunca cheguei a alinhavar. Já sapato é mais complicado, quando não serve tento adaptar com calçados que tenho. Mostro pra pessoa e ela vê se tem a ver etc. Se está só um pouquinho grande coloco uma palmilha, mas quando é 42 não dá, né? (Risos)

E as pessoas escolhem as roupas pra você? Elas dizem o que usar a cada dia?
Sempre marco um encontro com a pessoa, onde ela me entrega roupas e acessórios pra aquela semana. E aí tem de tudo: gente que tem looks muito bem definidos, gente que pergunta o que vou fazer naquela semana pra separar as roupas de acordo, gente que simplesmente dá as roupas pra eu escolher mas que me falam alguns critérios… E rolam coisas muito sutis, como o jeito de colocar o lenço. Esses pequenos gestos são muito interessantes: colocar lenço todo mundo coloca, mas o jeito que você coloca faz toda a diferença na caracterização. É muito louco, você percebe uma série de mudanças corporais! A pisada muda naquele sapato, por exemplo. E vai até os gestos, a roupa os muda. Uma amiga foi em casa e começou a rir quando abri a porta pra ela, ela dizia: “O jeito que você abrir a porta mudou!” Isso é fisico, se estou vestida com um xale, ele faz com que eu tenha que usar mais as extremidades no lugar de levantar o braço. Já o cabelo de lado altera minha visão periférica. E por aí vai. 

E o jeito como as pessoas te percebem? Muda?
Há um tratamento diferente, dependendo da roupa. Quando estou vestida por um homem, por exemplo, isso pode alterar até o meu jeito de falar! E percebo que tratam diferente, sim.

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Você sente falta das suas roupas?
Já senti em alguns momentos. Conforme fui entrando na experiência, senti menos. Essa história de experimentar coisas diferentes vai te envolvendo. Tem vezes que mudo meu humor, dependendo do quão confortável meu corpo está com a roupa… mas não sei se é só isso. Quando fico muito tempo seguido com uma performatividade ligada ao masculino, ou seja, vestida por um homem, muda. O vestir é comunicação com o mundo, não dá pra negar. 

Existe alguém específico com quem você acha que seria muito legal fazer essa performance?
Existe… mas não com alguém específico, é que às vezes passa alguém na rua e penso: “Nossa, seria tão legal se eu fizesse com essa pessoa.” Aliás, essa é uma possibilidade de desenvolvimento na performance, a abordagem de pessoas na rua pra fazer a experiência com elas. Outro dia estava vestindo uma jaqueta, tomando um chá num café, e veio uma menina falar comigo: “Só queria dizer que o seu casaco é legal, muito estiloso”. Expliquei pra ela, que tem 13 anos, e pra mãe dela que o casaco não era meu, contei a história. Ela se interessou pela experiência, adoraria que ela me vestisse, acho que vai rolar! E se rolar ela vai ser a participante mais nova!

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Você encara as roupas de outra maneira agora?
Sim. Comecei a pensar em como a gente tem um monte de coisa descartável, não vale a pena ter muita roupa. Entrei numa pira de olhar todas as etiquetas, de pensar sobre a indústria de moda, vi um documentário sobre a quantidade de lixo têxtil. A roupa é um material que não se desfaz. Essa reflexão apareceu ao vestir roupas de outras pessoas. Algumas vezes já saí e encontrei alguém vestido igual a mim. Mesma modelagem, mesmo tecido. Inevitavelmente você pensa: “Quem faz as roupas que a gente veste? De onde isso, que é igual a aquilo, vem?” De tempos em tempos a gente doa nossas roupas, mas elas vão pra onde? Você começa a pensar nesse ciclo da roupa, e em como valorizar o que é criado e produzido pelas pequenas marcas, mais independentes, ou como reaproveitar, reinventar. Pensar no que você veste como desenho, escultura e como sensação. Mas no fundo o “Descaracterizar-se” é uma estratégia pra intervir em mim mesma, como os outros programas do “Projeto Desandar” são!

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