Foram 80 tiros. Se você coloca na busca do Google “80 tiros”, ele autocompleta “como aconteceu”, “rio de janeiro”, “bolsonaro”, “de fuzil”, “exército”… “não foi engano”. Um carro foi fuzilado pelo exército brasileiro com um músico de 51 anos dentro, levando a família pra um chá de bebê. Ficou famoso um vídeo com o rapper Emicida dizendo que, se esse país fosse sério, ele estaria pegando fogo. Numa peça de roupa, o bordado de linha imita furo de balas escorrendo – é o novo desfile de Ronaldo Fraga na edição 47 do SPFW, que agora virou uma espécie de checkpoint do fashionista que está precisando de um canal de comunicação no Brasil dividido e cheio de ódio. Da gente que quer sentir seu discurso representado de alguma maneira na passarela.
Mas a gente quer um grito primal ou um abraço de acolhimento? Ronaldo fica entre os dois (e mais pro abraço), com trilha sonora ao vivo tocante que inclui “Trenzinho Caipira” e “Yolanda”. A ideia é imaginar um “Guerra e Paz” de Cândido Portinari atualizado pra 2019 – o que ele retrataria? Se em 1956 o artista mostrou retirantes nordestinos e a opressão do poder econômico, a coisa não mudou muito de figura: entram refugiados marginalizados, direitos ameaçados de minorias, uma realidade bélica que bate à porta de uma nação que tem um presidente que posa com uma criança imitando uma arminha com a mão. A poesia fica então fragmentada entre os capacetes e o camuflado que sugerem que a luta continua (ou que as viúvas da ditadura militar estão à espreita), as listras diagonais que pegam fogo, as túnicas que desafiam o binarismo, o indígena flagelado-crucificado na estampa que desafia o valor neocristão que valoriza o dogma e esquece a fraternidade e os desafortunados que, pelo que se diz, seriam exaltados…
A imagem de Marielle Franco, transformada em mártir das causas, pode incomodar alguns no contexto de desfile – um novo Che Guevara, com a imagem começando a ser esvaziada de contexto? Ronaldo obviamente sabe muito bem quem é ela e o que ela representa, tem se mostrado ativo nas suas convicções via redes sociais militando pelas mesmas bandeiras, e lança um olhar amoroso e cheio de significado sobre ela, mulher negra, lésbica, com cargo político e assassinada. Mas nem todo mundo que usa a camiseta do Che sabe quem foi Che e passa perto de convicções parecidas com as que Che, personagem bem mais controverso, possuía. Há que se estar atento e forte. Ademais, obrigado ao Ronaldo por mais uma vez transformar sua passarela em megafone da resistência. Sigamos.
E uma pequena observação: infelizmente é impensável que Portinari fizesse novos painéis à “Guerra e Paz” hoje, não apenas porque ele morreu em 1962. Esses foram encomendados pelo governo da época pra presentear a sede da ONU de NY – coisa que o atual governo, dado o não-apreço demonstrado pela cultura e educação, improvavelmente faria. (Jorge Wakabara)